É importante demais para deixar de publicar este texto de Anselmo
Borges no Diário de Notícias de 8 de Setembro p.p. Referia-se ao grande
vulto do Cristianismo, o cardeal Carlo M. Martini que morreu na semana passada.
"No dia 8 de Agosto, em jeito de testamento espiritual, deu a sua última
entrevista, no Il Corriere della Sera, afirmando que a Igreja precisa de
"uma mudança radical. A começar pelo Papa e pelos bispos".
Preocupava-o uma Igreja 200 anos atrasada, sem vocações, agarrada ao bem-estar:
"os nossos rituais e vestimentas são pomposos." "Na Europa do
bem-estar e na América, a Igreja está cansada." Três instrumentos para
sair deste esgotamento: "O primeiro é a conversão. Deve reconhecer os
próprios erros. Os escândalos de pedofilia obrigam-nos a empreender um caminho
de conversão. As perguntas sobre a sexualidade e sobre todos os assuntos que
dizem respeito ao corpo são um exemplo. Devemos perguntar-nos se as pessoas
ainda escutam os conselhos da Igreja em matéria sexual. A Igreja é ainda uma
autoridade de referência ou apenas uma caricatura nos media?" O segundo
conselho e o terceiro têm a ver com a recuperação da palavra de Deus e dos
sacramentos como ajuda e não como castigo.
O cardeal Carlo M. Martini morreu na semana passada. Lúcido, e depois
de ter recusado a obstinação terapêutica. Perito em crítica textual do Novo
Testamento, foi arcebispo de Milão durante 22 anos e um intelectual eminente.
Homem de diálogo - é um best-seller a obra Em Que Crê quem não Crê, debate com
o agnóstico Umberto Eco -, era a figura mais brilhante do Colégio dos Cardeais.
Em 2008, exprimiu, com coragem, o seu pensamento sobre questões
fundamentais para a Igreja e para o mundo actual, num livro de conversas com
outro jesuíta, G. Sporschill: Colóquios Nocturnos em Jerusalém. Aí,
interrogava-se: "Quando o Reino de Deus chegar, como será? Como será,
depois da minha morte, o meu encontro com Cristo, o Ressuscitado?"
Causava-lhe preocupação "a falta de coragem". "A Igreja
deve ter coragem para reformar-se", pois ela "precisa constantemente
de reformas". "Porque eu próprio sou tímido, digo a mim mesmo na
dúvida: coragem!" Atreveu-se a pôr Lutero, "o grande
reformador", como exemplo, recordando que "a Igreja católica se
deixou inspirar pelas reformas de Lutero no Concílio Vaticano II". A
Igreja actual tem "medo", mas, se Jesus voltasse, "lutaria com
os actuais responsáveis da Igreja", recordando-lhes que "não devem
estar fechados em si mesmos, mas olhar para lá da própria instituição".
Foi sempre fiel à "sua" Igreja, que devia ser "uma
Igreja simples, com menos burocracia", pobre, humilde, que não depende dos
poderes deste mundo, uma "Igreja inventiva", "jovem", que
dá ânimo sobretudo aos mais pequenos e pecadores, que luta pela justiça, mais
colegial, e que volte ao Concílio, pois "há a tendência de afastar-se
dele".
Sobre a juventude e a sexualidade, incluindo as relações
pré-matrimoniais: "nestas questões profundamente humanas, não se trata de
receitas, mas de caminhos." A Igreja deve ir ao encontro de uma
sexualidade que não está "reservada ao confessionário e ao âmbito da
culpa", uma sexualidade "sã e humana", com "uma nova
cultura que promova a ternura e a fidelidade".
Foi sensível no trato com os homossexuais e compreendia o uso do
preservativo. Confessou que a encíclica Humanae Vitae, em 1968, com a proibição
da "pílula contraceptiva", "é co-responsável pelo facto de
muitos já não tomarem a sério a Igreja como parceira de diálogo e mestra".
Mas estava convicto de que "a direcção da Igreja pode mostrar um caminho
melhor do que o da encíclica". Procuramos "um novo caminho" para
falar sobre a sexualidade, a regulação da natalidade, a procriação medicamente
assistida. Contra o celibato obrigatório, disse que era preciso "debater a
possibilidade" de ordenar homens casados e de abrir a ordenação às
mulheres.
Reconheceu as suas "dúvidas de fé". "Combati com
Deus", "porque, quando vejo o mal do mundo, fico sem alento e entendo
os que chegam à conclusão de que Deus não existe". Mas acreditava que
"o amor de Deus é mais forte", e o inferno está vazio.
Alguma imprensa inglesa definiu-o como o "Papa perfeito para o
século XXI". Como seria a Igreja, se Martini tivesse sido Papa? De
qualquer modo, ele foi um exemplo de que uma Igreja outra é possível".