A essência da linguagem machista
constitui-se em fazer com que as mulheres não sejam visíveis, de forma que
possam ou não ser incluídas em expressões do mundo masculino. Para dificultar
ainda mais as coisas, soma-se a isso uma compreensão dos textos machistas, e
portanto redutora, na história da interpretação do cristianismo. (Gerd Theissen
e Annette Mertz)
As mulheres foram um
marco no cristianismo primitivo, tornaram-se lideranças reconhecidas e
respeitadas nas comunidades. Numa época em que a mulher não tinha espaço, e não
era valorizada, elas actuavam em paridade com os homens.
Este reconhecimento foi feito por Jesus Cristo.
É reconhecido que um estudo sobre a mulher na sociedade
antiga não é fácil de se fazer. Até porque as fontes históricas que temos sobre
esse tema, na maior parte contêm um perspectiva machista ou, no mínimo,
patriarcal.
Dessa forma, é por meio do olhar masculino que o feminino se
tornou conhecido. Segundo Theissen, “a
essência da linguagem machista constitui-se em fazer com que as mulheres não
sejam visíveis, de forma que possam ou não ser incluídas em expressões do mundo
masculino. Para dificultar ainda mais as coisas, soma-se a isso uma compreensão
dos textos machistas, e portanto redutora, na história da interpretação[1]”.
Em Roma as mulheres nobres podiam andar livremente em
público, receber formação educativa e associar-se a alguma associação de
mulheres ou de famílias. No entanto, nessas associações, as mulheres aparecem
ao lado dos homens.
As mulheres ricas eram requisitadas para fundar clubes
masculinos. Nos cultos familiares privados, elas aparecem como “sacerdotisas”
ou “líderes”[2].
Em Roma as mulheres alcançaram, num determinado período do
império, uma liberdade e autonomia que indignaram posteriores historiadores que
viviam num mundo no qual a mulher se havia, novamente, submetido ao poder
masculino[3].
Para percebermos essa autonomia da mulher no mundo
greco-romano, no mundo judaico-palestiniano e no mundo cristão, teremos de nos
concentrar em três espaços importantes: a casa, a família e a religião.
No mundo greco-romano as mulheres não eram consideradas
cidadãs. Eram “mães, esposas ou filhas de cidadãos”[4].
A influência da mulher circunscrevia-se ao interior da casa.
Porém havia uma diferença entre as mulheres gregas e as romanas. Enquanto as mulheres
gregas ficavam encerradas nas suas residências, as romanas podiam acompanhar os
maridos a festas e banquetes[5].
Todavia, a casa era o lugar de permanência das mulheres. Os
limites dos seus movimentos chegavam até às portas da casa.
Eram responsáveis pela educação dos filhos e pelo bem-estar
do marido. Distribuíam os trabalhos pelos escravos, cuidavam da alimentação e
do vestuário. Dentro da casa existiam espaços separados para homens e mulheres.
À semelhança das mulheres judias, as que pertenciam às classes mais baixas
tinham mais liberdade em público; visto terem de trabalhar fora de casa para
ajudar o marido[6].
O oikos é o seu domínio. As coisas funcionam em redor
da dona da casa e das mulheres que estão à sua volta – filhas, parentes e
servas. As práticas e rituais religiosos são presididos pela mulher – orações e
libações –, enquanto o homem oferecia os sacrifícios. A dona de casa exerce, no
interior da sua casa, a autoridade religiosa sobre as outras mulheres[7].
No casamento, a mulher cumpre a função de mãe, mas o título
de mater familiæ, só
é adquirido quando dá filhos legítimos ao seu marido. Este título é de grande
dignidade para a esposa. Mesmo se o título não for obtido, o direito romano
reconhece a sua autonomia e o seu papel de “cidadã”. Já o pai, obtém o título
de pater familiæ directamente,
por herança do seu pai ou progenitor[8].
No mundo judaico-palestiniano, a mulher dentro de casa
significava viver excluída da vida pública. Na casa paterna o lugar das filhas
vem sempre depois dos filhos; a formação era limitada: aprendiam trabalhos
domésticos, costura, fiação, cuidar dos irmãos mais novos, etc. Tinham a obrigação,
para com o pai, de alimentá-lo, dar-lhe de beber, vesti-lo, cobri-lo, ajudá-lo
a entrar e sair de casa; na velhice, lavar-lhe o rosto, as mãos e os pés. Não
tinham os mesmos direitos que os irmãos. A família judaica era de tradição
patriarcal. Tudo é centralizado na figura paterna que goza de total autoridade
sobre todos da casa. “O marido é o senhor (ba’al) da mulher.”[9]
As filhas dependiam totalmente do pai, até chegarem à idade
de se casar. Até aos doze anos a autoridade do pai é soberana. O pai escolhe o
futuro cônjuge e a filha não pode recusá-lo; este tem, ainda, autoridade de
vendê-la como escrava. Depois dos doze anos ela torna-se autónoma; pode
casar-se sem o consentimento do pai; porém, o dote que o noivo pagava pertencia
ao pai. Com o casamento, o pai transferia a autoridade dele para o cônjuge[10].
As mulheres estavam proibidas de servir à mesa quando tinham
convidados, com medo de que pudessem exercer influência ao escutarem alguma
conversa “reservada”. Esse era um dos motivos para que elas vivessem encerradas
no interior da casa, principalmente as solteiras[11].
Os deveres de esposa consistiam em atender às necessidades
do lar; cozinhar, lavar, moer, amamentar os filhos, fiar, tecer, arrumar a cama
do marido, preparar o banho. Ela era obrigada a obedecer ao marido como seu
senhor; essa obediência estava revestida de poder religioso. A falta de filhos
era vista como desonra ou castigo divino. Já o facto de ter filhos, principalmente
se fossem homens, dava importância à mulher. Sendo mãe, era valorizada[12].
Não participavam da vida pública; eram mães, esposas, donas
de casa. Não podiam pronunciar-se publicamente. No templo, havia um lugar
reservado para elas. Eram separadas por regras de impureza. Dependendo do lugar
em que habitavam podiam ter outras possibilidades.
As regras de decoro proibiam a mulher de se encontrar
sozinha com um homem. Não podia cumprimentar nem ser cumprimentada. Um homem
não podia olhar para uma mulher casada. Aquela que conversasse com uma pessoa
na rua ou fosse vista fora de sua casa podia ser repudiada. As filhas, antes do
casamento, deveriam preferivelmente manter-se dentro de casa[13].
Algumas mulheres judias tinham posses financeiras. Podiam
construir sinagogas, comprar e libertar escravos e, ainda, exercer a liderança
na sinagoga. As mulheres asiáticas que se convertiam ao cristianismo “devem ter
esperado ter a mesma influência na comunidade cristã”; principalmente as
mulheres ricas. Contudo, também havia mulheres escravas que, dado o seu nível
cultural, exerciam funções de “ministros”.
No judaísmo do tempo de Jesus, a mulher cuja família era
fiel à lei, não participava da vida pública. Ao sair de casa ela trazia a
cabeça coberta por um manto para que os traços do seu rosto não fossem
reconhecidos. Portanto, em público elas passavam despercebidas.
Essas regras eram cumpridas mais no contexto urbano e nas
classes abastadas. Nos meios mais populares, a mulher precisava de ajudar o
marido na sua profissão, inclusive no comércio. Nas zonas rurais, as relações eram
mais livres: a mulher ia à fonte, dedicava-se ao trabalho agrícola,
comercializava azeitona e outros produtos do campo, servia à mesa. Nada indica
que no campo ela mantivesse o hábito de cobrir a cabeça, como na cidade[14].
[1] THEISSEN, Gerd & MERZ,
Annette. O Jesus histórico – um manual. São Paulo: Loyola, 2002. p. 243
[2] BRANICK, Vincent. A
igreja doméstica nos escritos de Paulo. São Paulo: Paulus, 1994. p. 50-51.
[3] CUNHA, Elenira Aparecida. Por
causa do reino dos céus. Tese de Doutoramento. São Paulo: UMESP, 2003. p.
95.
[4] ZAIDMANN, Louise Bruit. As
Filhas de Pandora: mulheres e rituais nas cidades. In: DUBY, Georges
& PERROT, Michele (Org.). História das mulheres no ocidente. Vol 1.
Porto/São Paulo: Afrontamento/Ebradil, 1993. p. 411 - 412.
[5] POMEROY, Sarah B. Diosas, rameras, esposas y
esclavas: mujeres em la antigüedad clásica. Madrid: Akal, 1987. p. 192.
[6] STEGEMANN, Ekkehard W. & STEGEMANN, Wolfgang. História
social do protocristianismo. São Paulo/São Leopoldo: Paulus/Sinodal, 2004.
p. 416. GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia. Petrópolis: Vozes,
1992. p. 248.
[7] ZAIDMANN, Louise Bruit. As Filhas de Pandora: mulheres
e rituais nas cidades. In: DUBY, Georges & PERROT, Michele (Org.). História
das mulheres no ocidente. Vol 1. Porto/São Paulo: Afrontamento/Ebradil,
1993. p. 452.
[8] THOMAS, Yan. A divisão dos sexos no direito romano. In: DUBY, Georges
& PERROT, Michele (Org.). História
das mulheres no ocidente. Vol 1. Porto/São
Paulo: Afrontamento/Ebradil, 1993. p. 147.
[9] MORIN, Émile. Jesus e as estruturas de seu tempo. São
Paulo: Ed. Paulinas, 1984. p. 55.
[10] JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus. São
Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p. 480.
[11] TEPEDINO, Ana Maria. As discípulas de Jesus. Petrópolis:
Vozes, 1990. p. 79.
[12] JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus. São
Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p. 485-489.
[13] JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus. São
Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p. 476-77.
[14] JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus. São
Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p. 473-77. GASS, Ildo Bohn. Período grego e vida
de Jesus. São Paulo: Cebi/Paulus, 2005. p. 178. STEGEMANN, Ekkehard W.
& STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo. São
Paulo/São Leopoldo: Paulus/Sinodal, 2004. p. 412-418.