Ao reler alguns apontamentos meus, não pude deixar de
considerar, mais uma vez, os textos tão importantes de Anselmo Borges. Eis
porque relembro aqui um texto publicado já em Dezembro de 2011:
"O que de modo grave infectou o cristianismo foi a
doutrina infausta do pecado original. Escreveu o grande historiador católico
Jean Delumeau: "Não é exagerado afirmar que o debate sobre o pecado
original, com os seus subprodutos – problemas da graça, do servo ou livre
arbítrio, da predestinação –, se converteu (no período central do nosso estudo,
isto é, do século XV ao XVII) numa das principais preocupações da civilização
ocidental, acabando por afectar toda a gente, desde os teólogos aos mais
modestos aldeões. Chegou a afectar inclusivamente os índios americanos, que
eram baptizados à pressa para que, ao morrerem, não se encontrassem com os seus
antepassados no inferno. É muito difícil, hoje, compreender o lugar tão
importante que o pecado original ocupou nos espíritos e em todos os níveis
sociais. É um facto que o pecado original e as suas consequências ocuparam nos
inícios da modernidade europeia o centro da cena mundial, sem dúvida muito
atribulado."
Quando se fala em pecado original, é necessário atender ao
seu significado. A língua alemã, precisa como é, distingue entre Ursünde (o pecado
originário) e Erbsünde (o pecado herdado). O autor principal do pecado original
enquanto herdado foi Santo Agostinho. Para explicar o mal, também o sofrimento
e a morte, postulou que no pecado de Adão e Eva todos pecaram e não hesitou em
deixar cair no inferno as crianças sem baptismo.
Neste contexto, Santo Anselmo, no quadro jurídico da
doutrina da satisfação, ensinou que só a morte de Cristo na cruz podia pagar a
dívida infinita da culpa do pecado. Só a morte do Filho podia aplacar a ira de
Deus e reconciliá-lo com a Humanidade.
Jesus, porém, não falou em pecado original.
Depois, com a doutrina da evolução, como era possível
conceber o pecado dos primeiros seres humanos (quem foram os primeiros?), ainda
em processo de humanização, um pecado tal que tinha transformado a natureza das
coisas?
Foi Hegel que viu bem: o que se chama pecado original não é
senão uma metáfora para indicar a passagem da animalidade à humanidade, da
saída do paraíso da inocência da inconsciência e da fusão com a natureza à
consciência de si e da mortalidade: se comerdes da árvore do bem e do mal (como
podiam pecar, se ainda não sabiam do bem e do mal?), sabereis que estais nus
(cada um é ele mesmo, ela mesma, separados e já não fundidos com a natureza) e
que sois mortais.
Agora, é Armindo Vaz, professor da Universidade Católica,
que, numa obra de profunda e ampla investigação - Em vez de "história de
Adão e Eva": O sentido último da vida projectado nas origens - vem
esclarecer a problemática do Génesis, capítulos 2-3.
Evidentemente, só posso deixar algumas proposições
inevitavelmente fragmentárias.
1. Trata-se de um mito de origem, e os mitos de origem são
etiológicos, pretendem, projectado nas origens, "compreender, interpretar,
dizer o sentido último, antropológico/religioso, das coisas da vida por meio da
fé".
2. Adão e Eva não existiram: são personagens míticos e não
históricos.
3. O "paraíso terreal" é o "pomar da
várzea"; o que existe para a fé é, em esperança, o "paraíso
celeste".
4. Com Adão e Eva, pretende-se exprimir a existência
complementar do homem em relação com a mulher e vice-versa.
5. A nudez não é passível de interpretação sexual; o
abrir-se dos olhos pelo conhecimento do bem e do mal é o evoluir do ser humano
da incivilização para a civilização e a cultura.
6. Como se pode falar em pecado ou mal moral, se ao cometer
a "transgressão" o Homem ainda não gozava de
"conhecimento", que só adquire precisamente no acto de
"comer" o fruto proibido?
7. Com o motivo da "árvore da vida", afirma-se que
não pode viver para sempre, porque a imortalidade é prerrogativa exclusiva de
Deus: o Homem não pode ser como Deus.
8. Não há ligação entre mal moral e mal natural."
Concluindo, o que este mito pretende é ligar os aspectos do
mundo a uma Origem ou a um Criador divinos. Deus é apresentado como sentido
último de tudo o que existe.
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